“Nos sentimos abandonados.” A frase, dita com voz embargada por Andrea Kogan, sintetiza um sentimento que cresceu entre judeus do mundo todo após os ataques do Hamas em 7 de outubro de 2023. Pesquisadora e referência nos debates sobre judaísmo contemporâneo no Brasil, Andrea recebeu o Política SP em seu apartamento, na zona oeste de São Paulo, para falar sobre identidade judaica, antissemitismo e o que ela define como “uma solidão política”: as omissões — e os silêncios — de setores da esquerda, de instituições e até de amigos diante da dor dos judeus.
Criada no Bixiga, na capital paulista, Kogan carrega no gesto e na fala uma intensidade afetiva — por vezes, combativa. É uma intelectual judia de orientação progressista, guiada pelo diálogo e pela reflexão crítica. Doutora em Ciências da Religião pela PUC-SP, atua como assistente acadêmica no Laboratório de Política, Comportamento e Mídia (Labô) da mesma universidade e é autora do instigante “Espiritismo Judaico”.
No começo de abril, em meio à continuidade dos conflitos em Gaza e à tensão global, Kogan falou com franqueza sobre o impacto disso tudo para quem é judeu fora de Israel. “Cada vez que vejo uma declaração do Netanyahu, eu me pergunto: pra onde a gente vai? Ainda tem reféns. Famílias desesperadas.” E completa: “A posição do Netanyahu é complicadíssima. Se fosse outro líder, talvez tivesse pedido demissão”.
Mas a conversa também foi sobre caminhos — especialmente os caminhos da educação. “A mesma coisa que se faz contra o racismo, contra a homofobia, tem que ser feita contra o antissemitismo: educação, acima de tudo.” A pesquisadora defende o letramento religioso, a distinção entre o judaísmo e o Estado de Israel, e a adoção de protocolos claros contra o antissemitismo, como os da Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (IHRA). “Antes de tudo, é preciso entender o que é sionismo. Muita gente não sabe. Sionismo é o direito de existir do povo judeu”, salienta.
Nesta longa entrevista, ela também compartilha indicações valiosas de livros e documentários que ajudam a enfrentar o ódio contra os judeus — “Como Curar um Fanático”, de Amos Oz, e “People Love DeadJews”[As pessoas adoram judeus mortos], de Dara Horn — e deixa um recado direto: é preciso parar de categorizar seres humanos. “Antissemitismo é crime. Como combater? Falando, mostrando, ensinando. Não tem outro jeito”, afirma.
Leia a entrevista completa:
Rodolfo Capler — Como surgiu seu interesse pelo judaísmo e, especialmente, pelo enfrentamento ao antissemitismo?
Andrea Kogan — Meu interesse vem da experiência pessoal. Nasci em uma família judaica, estudei a vida toda em escolas judaicas e vivi até os 18 anos imersa nesse universo. Cresci no Bixiga, bairro paulistano que, nas décadas de 1970 e 1980, reunia muitos judeus, mas também uma diversidade enorme de imigrantes. Isso me expôs desde cedo à pluralidade cultural e religiosa, inclusive conheci judeus que seguiam outras tradições, o que me levou a perceber que o judaísmo é mais do que uma religião: é identidade, cultura, etnia e até nacionalidade. Na época, com 16 anos, eu não tinha vocabulário pra dizer isso, mas já percebia. Tinha amigos em rituais espíritas, de umbanda, candomblé, entre outros, e eu pensava: um dia vou estudar isso. O tempo passou, dei aula, fiz várias coisas, e comecei a estudar mais a fundo o judaísmo, especialmente a filosofia judaica. Por volta de 2011, percebi que estava lendo muito sobre judaísmo contemporâneo: o que é ser judeu hoje, judaísmo em diálogo com outras religiões, diversidade, literatura de testemunho… sempre lidando com essas questões. Foi então que mandei um e-mail para professor Luiz Felipe Pondé. Achei que ele nunca fosse responder. Me apresentei: “Sou Andrea Kogan e queria estudar o quanto o judaísmo no Brasil dialoga com outras espiritualidades. Aqui a gente tem o espiritismo, a umbanda…” Perguntei se ele teria interesse em me orientar num doutorado — eu já tinha feito o mestrado. E ele respondeu: “Tenho, vem conversar comigo”. A partir daí, iniciamos uma colaboração que já dura quase 15 anos. No doutorado, foquei nos judeus espíritas em São Paulo, sempre pela lente da diversidade. Um ponto inevitável no estudo do judaísmo é a Shoá: ela atravessa tudo: filosofia, sociologia, antropologia, até economia. Por isso, voltei à filosofia judaica e aos testemunhos dos sobreviventes, que sempre foram parte do meu trabalho. Entre 2002 e 2003, integrei o grupo “Diálogos da Diáspora: Antissemitismo e Racismo”, coordenado pela Dra. Nelise Frois. Hoje, continuo nessa linha como pesquisadora do grupo Judaísmo Contemporâneo. Mas houve um divisor de águas: o ataque terrorista do Hamas, em 7 de outubro de 2023. Esse evento alterou radicalmente a forma de viver como judeu no mundo. Para mim, há uma vida judaica antes e depois do 7 de outubro. Lembro do rabino Abraham Joshua Heschel, que dizia: “Você tem que agir, tem que fazer”. E é isso que me move. No enfrentamento ao antissemitismo, acredito que cada um deve usar o que sabe fazer. No meu caso, é informar, explicar com clareza e dar exemplos concretos. Em sala de aula, uso uma linguagem; nas redes, outra. Também estamos atuando em empresas com o projeto “Executivos contra o antissemitismo”, promovendo letramento sobre o tema. É uma construção de décadas, mas o que vivemos desde outubro de 2023 impactou profundamente a comunidade judaica, que, aliás, é muito mais diversa do que costumam imaginar.
Rodolfo Capler — O antissemitismo tem raízes históricas profundas e se manifesta de diversas formas — religiosa, econômica, racial e política — assumindo diferentes formas e narrativas ao longo do tempo. Como ele se apresenta hoje, no Brasil e no mundo?
Andrea Kogan — O antissemitismo se adapta ao contexto em que está inserido, como a água que toma a forma do recipiente. Ele é uma teoria conspiratória que se molda aos ódios locais e às dinâmicas sociais. No cenário atual, marcado por uma forte polarização política e social, cresce a tendência de dividir tudo entre “bem e mal”, “direita e esquerda”, o que dificulta perceber a complexidade das pessoas e das situações. O antissemitismo contemporâneo aparece de muitas formas. Gosto de citar o livro “10 Mitos sobre os Judeus”, da historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro, que desmonta narrativas como “os judeus são ricos”, “controlam os EUA”, “são avarentos” ou “mataram Cristo”. Esses mitos persistem e se adaptam. Um exemplo atual é a ideia de que “os judeus são opressores”, o que os coloca como alvo de culpa por problemas sociais ou políticos. Quando alguém diz “todos os judeus são ricos”, eu pergunto: “Quantos judeus você conhece para afirmar isso?”. Em São Paulo, a comunidade judaica é de cerca de 60 mil pessoas e, muitos, vivem em situação de vulnerabilidade, dependem de assistência social, enfrentam falências. Como qualquer grupo, há diversidade de experiências e condições. Outro ponto importante é o estereótipo do judeu branco, de olhos claros, rico e poderoso — uma imagem que reforça a ideia de privilégio e alimenta a desumanização. Quando você reduz um grupo a um ideal, mesmo que positivo, como no caso do filosemitismo — “os judeus são inteligentes, bons com dinheiro, bem-sucedidos” —, isso também se torna problemático. Estereótipos positivos ainda são estereótipos, e alimentam expectativas irreais ou ressentimentos. Além disso, há a ideia religiosa do “povo eleito”, que, dependendo da leitura, pode gerar uma percepção idealizada e afastada da realidade, reforçando um sentimento de inveja.
Rodolfo Capler — A inveja é, de fato, um dos motores do antissemitismo?
Andrea Kogan — Sem dúvida. Existe uma inveja profunda em relação aos judeus, e isso se manifesta de diversas formas. É aí que entra a lógica do bode expiatório; os judeus acabam sendo responsabilizados por tudo. Isso é histórico e muito grave. Um exemplo marcante: tanto os nazistas quanto a União Soviética viam os judeus como um problema. Mesmo sendo ideologias completamente opostas, tinham o mesmo alvo e propuseram a mesma “solução”: eliminar os judeus. Um paradoxo assustador. Após a Segunda Guerra, houve uma queda nos casos de antissemitismo, muito em função do choque global diante do Holocausto. O horror foi tão grande — seis milhões de judeus assassinados, campos de extermínio, julgamentos como o de Nuremberg — que o mundo ficou sensibilizado. Foi a guerra mais documentada da história: fotos, vídeos, testemunhos. Não é só o diário da Anne Frank (que, aliás, não sobreviveu), mas os relatos de quem passou por aquilo e conseguiu contar. Hoje ainda temos alguns sobreviventes vivos, mas são cada vez mais raros. Agora, quem assume esse papel são os filhos, netos, bisnetos, as chamadas segunda e terceira gerações. E há iniciativas poderosas nesse sentido, como a Shoah Foundation, criada por Steven Spielberg. Eles gravaram centenas de horas com sobreviventes, e, com o uso da inteligência artificial, é possível até “conversar” com eles. Você entra no site, escolhe um perfil e faz perguntas. A resposta vem como se fosse uma entrevista ao vivo. É emocionante. Eu mesma já utilizei com meus grupos; é uma ferramenta pedagógica impressionante. Vale muito a pena conhecer.
Rodolfo Capler — O ataque perpetrado pelo Hamas contra civis israelenses em 7 de outubro de 2023 representou um ponto de inflexão no crescimento do antissemitismo ao redor do mundo?
Andrea Kogan — Totalmente. Foi um marco. Já tínhamos visto outros ataques antes, mas esse teve o maior número de judeus assassinados desde o Holocausto. Não se trata de comparar proporções, mas foram cerca de mil mortos. Foi uma invasão brutal promovida por um grupo terrorista — e é importante deixar claro: o Hamas não é um grupo de libertação, é um grupo terrorista, reconhecido como tal inclusive por sua própria carta fundadora. Nela está declarado o objetivo de aniquilar o Estado de Israel e os judeus. O que aconteceu nesse ataque foi algo sem precedentes. Invadiram kibutzim, um festival com jovens libertários, pacifistas e cometeram atrocidades. Há vídeos, documentos, testemunhos: estupros filmados, assassinatos transmitidos em tempo real, um bebê colocado dentro de um forno, ligações feitas para familiares mostrando quantas pessoas tinham matado. É difícil até encontrar palavras para isso. Nunca vimos algo assim. Depois, veio o debate sobre a resposta de Israel. O governo Netanyahu é extremamente complexo (não vou entrar no mérito agora), mas era previsível que haveria uma resposta militar. E, infelizmente, isso também resultou na morte de muitos civis. É uma tragédia por todos os lados. Ninguém quer ver vidas inocentes sendo perdidas.
Rodolfo Capler — Muitos críticos classificam a resposta de Israel aos ataques perpetrados pelo Hamas, em 7 de outubro, como genocídio. Na sua visão, o que está acontecendo em Gaza pode ser caracterizado dessa forma?
Andrea Kogan — Genocídio é um conceito muito sério. Não é uma palavra que a gente pode usar levianamente. Existe uma definição técnica, com base em estudos e estruturas como a chamada “pirâmide do ódio”. O genocídio não começa com bombas. Ele começa com discursos de ódio, passa por ataques a instituições, perseguições, marginalizações, até chegar aos massacres, como vimos na Segunda Guerra. O ponto central do genocídio é a intenção deliberada de destruir, total ou parcialmente, um povo, uma etnia. E isso, hoje, não está acontecendo com os palestinos. Eu, particularmente, não gosto do Netanyahu, mas essa não é a questão. O problema é que muitos saem afirmando que o que está acontecendo é genocídio, sem levar em conta os critérios objetivos. Eles têm o direito de opinar, claro. Mas, na minha leitura, isso não se encaixa no que caracteriza um genocídio. No dia 7 de outubro, centenas de pessoas foram sequestradas: bebês, jovens, idosos. Meses se passaram e ainda não sabemos quem está vivo ou morto. Cerca de 40 ou 50 reféns continuam desaparecidos. A resposta de Israel ao ataque do Hamas foi tentar eliminar a liderança do grupo e, infelizmente, numa guerra, isso acaba atingindo civis também. É horrível, é doloroso. A gente sofre por todos. Eu me comovo com a dor de uma família palestina em Gaza tanto quanto com a dor de uma família israelense. Isso é humanidade. Só que aí o discurso muda de direção. Retorna aquela narrativa simplista: os judeus como os opressores, os ricos, os escolhidos; e os palestinos como as vítimas absolutas. Mas o mundo não é tão binário assim. Não existem 100% de opressores e 100% de oprimidos. E, curiosamente, os mesmos que acusam Israel de genocídio muitas vezes se calam diante de outros conflitos, como a invasão da Ucrânia pela Rússia, onde há denúncias comprovadas de estupros de crianças e idosos. Por que o silêncio nesse caso? Esse é o antissemitismo contemporâneo. Ele já não se esconde. Está explícito. As pessoas perderam a vergonha de serem antissemitas. Depois do 7 de outubro, amigos meus ficaram chocados com o que ouviram de colegas, de gente próxima. Mas eu já sabia. O antissemitismo estava dormente; agora ele se sente autorizado. Quando figuras públicas ou religiosas falam com naturalidade preconceituosa, muita gente entende que também pode “falar o que pensa”, mesmo que isso alimente o ódio.
Rodolfo Capler — Como você enxerga a atuação e os posicionamentos da esquerda diante do atual conflito em Gaza? Na sua percepção, existe, dentro da esquerda brasileira, um problema com o antissemitismo?
Andrea Kogan — Essa pergunta machuca. Eu sempre me identifiquei com a centro-esquerda. Muitos dos meus amigos judeus também. Mas hoje nos sentimos abandonados. Professores, colegas, pessoas com quem convivíamos há anos, de repente passaram a nos olhar com desconfiança, a nos hostilizar. Como se o simples fato de ser judeu implicasse cumplicidade com crimes. É uma solidão política. A esquerda tem essa tendência de se alinhar automaticamente com o que entende como o lado oprimido. E, dentro dessa lógica, Gaza ocupa esse lugar. Então é para lá que vai toda a empatia — e só para lá. Mesmo após o massacre de 7 de outubro, houve quem dissesse: “Mas Israel mereceu”. Mereceu? E os bebês sequestrados? Os jovens assassinados num festival de música, muitos deles pacifistas? Eles também “mereciam”? O silêncio foi ensurdecedor. Nosso presidente não disse absolutamente nada sobre as vítimas daquele ataque terrorista. Nada. Todos os países, mesmo os que têm críticas severas a Israel, se manifestaram. Porque tragédias desse tipo pedem, no mínimo, um gesto de solidariedade. Um posicionamento humano. Mas o Brasil se calou. E esse silêncio também fala muito.
Rodolfo Capler — Então o antissemitismo também se manifesta pela omissão?
Andrea Kogan — Sem dúvida. A indiferença é, talvez, a forma mais insidiosa de antissemitismo. Não é um ataque direto, mas é profundamente destrutiva. Martin Luther King Jr. falava sobre isso. Elie Wiesel também. A indiferença permite que o mal aconteça, silenciosamente, ao lado da nossa rotina. Foi o que vimos na Alemanha nazista. As pessoas sabiam. Sabiam o que estava acontecendo, mas seguiam suas vidas, indo à igreja, jantando fora, criando seus filhos, enquanto os trens carregavam judeus para os campos e o cheiro de corpos queimados saía pelas chaminés de Auschwitz. Existe um vídeo emblemático, gravado logo após a libertação do campo, que mostra membros da elite alemã entrando ali pela primeira vez. O olhar deles é de choque, mas a pergunta inevitável é: “Onde vocês estavam?” A resposta é dolorosa: estavam por perto, apenas calados. Isso é omissão. E é exatamente esse o risco da indiferença.
Rodolfo Capler — Algumas figuras públicas, como Elon Musk e Steve Bannon, têm protagonizado episódios recentes que foram amplamente interpretados como referências a simbologias nazistas. Como você avalia essas manifestações e o impacto que elas têm no cenário atual de combate ao antissemitismo?
Andrea Kogan — Sinceramente? Isso não me surpreende. O que realmente me choca é a reação seletiva das pessoas. Tem gente nas redes que entra em colapso perguntando: “Foi uma saudação nazista? Não foi? Ele quis dizer isso mesmo?” — e, honestamente, eu nem me preocupei tanto, porque sabemos quem Elon Musk é, o que ele representa. O que me espanta de verdade é o silêncio diante do nazismo do dia a dia. Aquele vizinho, o colega de universidade, o cara da escola; esse tipo de antissemitismo velado e constante passa batido. No dia em que o Musk fez aquele gesto, vi gente aos berros nas redes sociais. Mas quando falei sobre o massacre de mais de mil pessoas, ninguém disse uma palavra. E aí? Por que agora todo mundo se manifesta? Porque falar do Musk gera engajamento. Dá curtida, dá visibilidade. É uma indignação conveniente. E o mais irônico é que muitas dessas mesmas pessoas, que se dizem antifascistas, estão defendendo grupos extremistas como o Hamas, que, vale lembrar, também têm como objetivo a eliminação de um povo. Então me pergunto: qual é a lógica? A gente, com nosso humor judeu, até brinca que virou quase um “pacote ideológico”. Tem gente que estuda ciências sociais, frequenta certos ambientes, se veste de um jeito e, nesse combo, o antissemitismo vem incluído. Virou estereótipo.
Rodolfo Capler — Quando figuras públicas flertam com símbolos ou discursos associados ao nazismo, isso pode contribuir para a normalização do antissemitismo? Você acredita que esse tipo de atitude estimula outras pessoas a enxergarem o nazismo de forma menos crítica ou até positiva?
Andrea Kogan — Difícil dizer. Acho que, no fim das contas, sempre haverá os dois lados: os que já são antissemitas e se sentem validados, e os que se opõem frontalmente, independentemente de quem está em evidência. Quem carrega esse ódio dentro de si vai encontrar uma brecha para continuar alimentando. Vai se encantar por esses líderes, vai ignorar os sinais, vai normalizar o absurdo. E quem tem consciência vai continuar resistindo, mesmo quando a maré está contrária. O antissemitismo, assim como as teorias da conspiração que o sustentam, é mais profundo do que qualquer figura pública. Não nasce do nada. É algo que muitas vezes vem de casa, de geração em geração, como um legado distorcido. E hoje, com as redes sociais, é ainda mais perigoso, porque cada um monta a realidade que deseja ver. É como na pandemia, quando circulava aquela mentira de que determinada vacina causava autismo. A pessoa não buscava saber a verdade. Ela digitava no Google exatamente o que queria ouvir: “vacina X causa autismo?”, e claro, achava vídeos, artigos, depoimentos que confirmavam sua crença. Ela não procurava saber se era verdade, mas procurava confirmar o que já acreditava. Com o antissemitismo é igual. Digita-se “fulano é antissemita?”, e aparece um mar de conteúdos que dizem que sim, que é justificável, que faz sentido odiar judeus. É assustador. Tem um livro muito bom do psicólogo social Daniel Levitin, cujo título é “A Field Guideto Lies: Critical Thinking in the Information Age”. Ele analisa o comportamento de pessoas durante a pandemia; gente que acreditou em fake news até o último suspiro. Algumas morreram por isso. E, infelizmente, o antissemitismo opera na mesma lógica: a mentira, repetida mil vezes, vira “verdade” para quem quer odiar.
Rodolfo Capler — Essas manifestações neonazistas podem ser interpretadas como sinais de uma ruptura no contrato social que sustenta os valores da civilização ocidental?
Andrea Kogan — Sem dúvida. Estamos vivendo uma ruptura civilizatória real, concreta. E ela vem acompanhada de uma ignorância assustadora. As pessoas banalizam símbolos, gestos, discursos que carregam um peso histórico enorme. Gente como Steve Bannon, por exemplo, se conecta abertamente a grupos de extrema-direita como o AfD, na Alemanha — e eles fazem os mesmos gestos, usam a mesma retórica. Está tudo escancarado. Mas o problema vai além. Essa ignorância não é apenas falta de informação, é uma recusa deliberada em aprender, em entender. E tem outro ponto delicado que precisa ser dito: quando tudo vira antissemitismo, nada mais o é. Quando tudo é rotulado como racismo, machismo e homofobia, perdemos o critério, e isso enfraquece o combate real ao preconceito. Outro dia, conversei com a diretora de uma escola. Ela precisou demitir um professor. Só que hoje, qualquer demissão pode virar acusação: “foi porque sou judeu”, “foi porque sou negro”, “foi porque sou trans”. Às vezes, sim, é preconceito. Mas às vezes, não. Às vezes a pessoa é simplesmente ruim no que faz. Chata. Incompetente. E isso independe da identidade que carrega. Se cada judeu demitido disser “fui mandado embora por ser judeu”, a gente perde a clareza. O mesmo vale pra qualquer grupo. Precisamos de honestidade, até pra preservar a luta legítima contra o preconceito. Estamos, sim, vivendo um colapso de valores. O Brendan O’Neill, inclusive, lançará um livro em junho, que deve sair em português: “Depois do Pogrom: Israel, 7 de Outubro e a Crise da Civilização”. Ele fala exatamente disso: estamos negando os pilares do Iluminismo, negando a razão, o pensamento crítico, a história. Estamos destruindo estátuas por associações com a escravidão (e isso é compreensível), mas também esquecemos que essas figuras são parte de um contexto histórico. Cancelar todo mundo que escreveu ou fez algo “errado” segundo os critérios de hoje é cair num anacronismo perigoso. Se formos por esse caminho, ninguém vai sobrar.
Rodolfo Capler — Como você avalia as decisões políticas de Benjamin Netanyahu, especialmente em relação ao conflito em Gaza e à sua postura frente à comunidade internacional? E quais os impactos dessas decisões para a maneira como os judeus, tanto em Israel quanto na diáspora, passaram a ser vistos no mundo?
Andrea Kogan — A gente até brinca entre amigos: analisamos tudo “chorrindo” — chorando e rindo ao mesmo tempo. Porque a sensação é essa. Toda vez que ele fala ou faz alguma coisa, lá em Israel, aqui na diáspora a gente sente o impacto direto. A gente é cobrado, acusado, colocado contra a parede. Parece que estamos sempre tendo que explicar o que não fizemos. E veja, o Netanyahu não é um líder qualquer. Ele tem processos pesados na Justiça, foi acusado de corrupção, fez alianças bem questionáveis pra se manter no poder. Israel tem disputas internas intensas, como qualquer democracia. Tem briga no parlamento, entre partidos, tem protesto. Muita gente esquece, mas até 6 de outubro de 2023, todo sábado tinha manifestação pedindo a saída dele. Eu tenho amigos que estavam lá, registrando tudo. E isso antes mesmo da tragédia em Gaza. A partir de 7 de outubro, o país virou outro. A resposta de Israel era esperada, claro. Mas… se fosse outro primeiro-ministro, será que teria sido diferente? Talvez sim. Talvez não. Mas com Netanyahu à frente, a coisa se torna ainda mais difícil. As ações militares, as decisões políticas… tudo isso respinga na gente. A gente vive dizendo: “Netanyahu, me ajuda a te ajudar!”. Mas ele não ajuda. E ao mesmo tempo… é tudo muito contraditório. Eu não confio nos números divulgados pelo Hamas, porque são um grupo terrorista, e a manipulação de dados faz parte da estratégia. Mas também não dá pra negar: tem muito civil morrendo. Tem sofrimento real. E a dor é imensa, de todos os lados. A maior ferida continua sendo a do dia 7 de outubro de 2023. Como foi possível aquilo acontecer? Uma festa invadida daquela maneira? Israel é conhecido por ter uma das inteligências mais sofisticadas do mundo. Como não viram? Como não impediram? Se fosse outro líder, talvez tivesse renunciado no dia seguinte. E aí a gente entra nesse dilema doloroso: como criticar o governo de Israel sem dar munição ao antissemitismo? Como proteger a vida dos civis palestinos sem ignorar o terror do Hamas? Como exigir a libertação dos reféns sem parecer insensível à dor do outro lado? Estamos em abril de 2025 e, sinceramente, cada vez que vejo uma declaração do Netanyahu, eu me pergunto: pra onde a gente vai? Ainda tem reféns. Famílias desesperadas. Gente que acredita que, com outra postura política, já teria conseguido libertar ao menos alguns. E responsabilizam diretamente o governo por isso. Mas nem tudo é preto no branco. Teve um discurso recente dele no Congresso Americano… Ele citou Isaías. E eu, que sou crítica ferrenha dele, fiquei tocada. Chamei uma amiga — também judia, também da esquerda, também combativa — e a gente se olhou e disse: “A gente ficou emocionada com o discurso do Netanyahu?!”. Era impensável. Mas ali, naquele momento, não foi o político que falou. Foi algo do nosso imaginário judaico. A gente quase chorou. Foram raros esses momentos. Mas eles mostram como tudo está confuso, dilacerado, misturado. Eu não tenho respostas. Nenhum judeu tem hoje. Só perguntas. E uma esperança imensa: que os reféns ainda estejam vivos. Que, de algum modo, ainda haja tempo pra alguma reconciliação, algum recomeço.
Rodolfo Capler — O que você acredita que organizações religiosas, empresas, instituições educacionais e a mídia podem fazer de forma efetiva para combater o antissemitismo? Quais ações específicas essas entidades podem adotar para promover a educação, a conscientização e a inclusão, de modo a evitar a perpetuação de estereótipos e preconceitos contra os judeus?
Andrea Kogan — A mesma coisa que fazem para combater o racismo, a homofobia, a transfobia: educação, acima de tudo. E quando falo de educação, não me refiro a uma palestra pontual, mas a criar espaços: rodas de conversa sobre diversidade religiosa, tanto nas escolas quanto nas empresas e na mídia. Trazer pessoas com propriedade para falar desses temas.É importante entender que judaísmo é uma coisa, e o Estado de Israel é outra. Embora o vínculo entre eles seja fortíssimo, estamos falando de dimensões diferentes. Judaísmo é uma religião milenar. Israel existe desde 1948. Há implicações geográficas, políticas e religiosas ali, mas são camadas distintas. As pessoas também confundem sionismo com a política do governo israelense. Sionismo é o direito à autodeterminação do povo judeu, o direito de ter um país. É isso. Quando alguém diz: “Sou antissionista”, vale perguntar: “Você é contra a existência do Estado de Israel?”. Se a resposta for “não”, então a pessoa não é antissionista. Muitas vezes, o que ela quer dizer é que é contra o Netanyahu, e aí tudo bem, eu também sou! Mas continuo sendo sionista. Porque acredito que Israel tem o direito de existir, e não vai ser destruído. Então, a chave está na educação, no letramento. E também na informação: o antissemitismo é crime no Brasil, conforme a mesma lei que trata do racismo. Você não pode categorizar pessoas como inferiores ou superiores com base em religião, origem ou etnia. Existem definições internacionais de antissemitismo adotadas por instituições religiosas, ONGs, universidades, como a da International Holocaust Remembrance Alliance (IHRA). No Brasil, estados e cidades já adotaram esse protocolo. A PUC foi a primeira universidade brasileira a fazer isso. Esse documento define situações que configuram antissemitismo: culpar todos os judeus pelas ações do Estado de Israel, impedir uma pessoa de usar kipá, fazer piadas ou insinuações com estereótipos… Tudo isso é crime. Então, o caminho é esse: educação, educação, educação. Mostrar filmes, ler livros, trazer palestrantes… Não tem outro jeito. A educação é o único caminho possível.
Rodolfo Capler — Quais obras literárias, documentários ou filmes você recomendaria para quem deseja se aprofundar no conhecimento sobre judaísmo e antissemitismo?
Andrea Kogan — Ótima pergunta. Acho que um bom ponto de partida é o livro “10 mitos sobre os judeus”, da historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro. Ele é direto, acessível, didático — perfeito pra quem quer começar a desconstruir preconceitos com base em informação séria. Outra obra que considero essencial é “Como curar um fanático”, do escritor israelense Amos Oz, que infelizmente já faleceu. É um livro curto, mas extremamente potente. Amos Oz fala sobre convivência, escuta, diálogo. Em tempos de polarização, ele nos ensina a desarmar o ódio com palavras, sem perder a firmeza ética. Também recomendo buscar documentários sobre antissemitismo — e mais do que isso: visitar espaços de memória. Aqui em São Paulo temos o Museu Judaico, um lugar excepcional, com exposições sensíveis e informativas. Em Curitiba há também centros dedicados à história judaica. Estar nesses lugares, ver os objetos, ouvir os relatos, sentir a presença da história… tudo isso tem um impacto que nenhuma leitura substitui. Se você lê em inglês, há um livro que me marcou profundamente: “People Love DeadJews”[As pessoas adoram judeus mortos], da autora Dara Horn. Ainda não foi traduzido para o português, mas vale demais o esforço. O título é provocador e necessário. A autora discute como o mundo costuma se comover com judeus mortos, com as vítimas do Holocausto, mas tem enorme dificuldade de lidar com judeus vivos, que pensam, que discordam, que existem com autonomia. É uma leitura brilhante e dolorosa, no melhor sentido. Nos últimos anos, também tivemos boas publicações em português sobre a história do povo judeu e do judaísmo. Autores como Mario Schnaiderman e Jaime Pinsky têm feito contribuições importantes. “A História dos Judeus”, de Pinsky, por exemplo, é uma obra que ajuda a entender a longa trajetória desse povo, com suas dores, conquistas, diásporas, renascimentos. Enfim, o letramento começa por aí: pela curiosidade, pela escuta, pela leitura. É preciso se aproximar, sem medo. Porque só assim a gente aprende a reconhecer a dignidade do outro e a defender essa dignidade quando ela é atacada.
Rodolfo Capler é jornalista, especialista em Direitos Humanos e autor de quatro livros, entre eles Geração Selfie (Quitanda) e Projeto de Poder (Fonte Editorial). Atualmente, trabalha como repórter no Política SP, cobrindo as áreas de cotidiano, religião, política e internacional. Anteriormente, colaborou com a Revista Veja, onde produziu artigos, matérias e entrevistas sobre política e religião.
